ARTE

Arte, Crônicas e Poesia

AQUELES OLHOS VERDES

Publicado em 03/09/2021 às 08:30

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Genaro Albertini era um solteirão muquirana e arredio, que tocava sozinho um próspero sítio que produzia, abundantemente, o café que trazia divisas para o Espírito Santo. Ele havia passado parte da juventude em um seminário no estado da Guanabara, pois sua mãe havia feito a promessa de Ana ((1 Samuel 2); aos 40 anos, ela ainda não tinha gerado filhos. Depois do voto feito, engravidou três vezes, no espaço de menos de dois anos entre um parto e outro. Genaro, o prometido, foi enviado ao seminário aos 16 anos. Contudo, os irmãos mais novos, esperança dos pais, morreram jovens. Agenor, o irmão do meio, faleceu aos 20 anos devido a um coice de cavalo na cabeça. Morte instantânea… Ágape, o irmão caçula, foi levado pelo tétano aos 26 anos. Vendo os pais já envelhecidos e deprimidos com a morte dos filhos mais novos, o primogênito abandonou a batina e voltou para Santa Teresa a fim de reerguer o sítio da família e cuidar dos progenitores.

Embora estivesse acostumado a uma vida de reclusão, oração e estudos, Genaro logo se reabituou ao trabalho da roça. Comandava os muitos meeiros, empregados diaristas e sabia negociar com os compradores de café. Mas a luta na lavoura é dura, o tempo passou, levando os velhos pais, e ele também encaneceu na fatigante batalha rural.

Com o tempo, ficou difícil encontrar meeiros e trabalhadores diaristas para a panha do café. Os teresenses mais jovens rumavam para as cidades e a zona rural carecia de braços jovens. O jeito seria trazer mão de obra longínqua. Genaro contratou um agenciador de trabalhadores de Minas Gerais. Em quinze dias, chegava uma leva de 20 pessoas, mas, oh! Como ele poderia adivinhar: todos negros! Ele não queria trabalhadores negros! No seminário, ele estudara as ideias eugenistas e por elas se apaixonara! Em sua casa, os velhos pais não admitiam acepção de pessoas, mas no seminário os ideais de superioridade racial infectavam muitas mentes e a dele era dessas! Não poderia mandá-los embora! O jeito era dar-lhes o trabalho, mas não pagaria o preço combinado anteriormente! Isso não! “Gente preta ia ganhar menos que gente branca!”. E assim foi, mas devido ao tratamento grosseiro e ao pagamento menor que o combinado, nos anos que se seguiram, o nome de Genaro Albertini já era malquisto nas cidades mineiras que mandavam trabalhadores para o Espírito Santo. Pouquíssimas pessoas subiam no transporte que os levaria ao seu sítio. Dessa maneira, o jeito foi encomendar a vinda de trabalhadores baianos; porém, dessa vez, pagaria o preço justo e os trataria com mais urbanidade, a fim de que seu café não se perdesse nos galhos.

Foi assim que um grupo alegre de trabalhadores sazonais chegou. Quem os recebeu foi o encarregado da colheita. Albertini, nessas ocasiões, não se aproximava, só dava ordens ao seu preposto, que as transmitia aos recém-chegados. Não por humanidade, mas por preocupação de não conseguir braços para o trabalho, ele havia mandado melhorar a habitação que receberia aquelas pessoas, a maioria homens! E, para desespero de Albertini, muito mais retintos e reluzentes do que os mineiros.  Contudo, entre eles, havia um que se destacava: porte ereto, tranquilo, manso, de nobres gestos e trazia um halo de simpatia. Mandou chamá-lo. Não deveria! Se soubesse, teria mandado o rapaz embora no transporte que ainda subia as curvas do sítio. Ele era preto, retinto, porém tinha olhos verdes! No seminário, Monsenhor Santini sempre enfatizava: “Negros de olhos verdes são os piores”.

Perguntou o nome.

– Vicente!

– Está bem! Está bem! 

E o jovem se foi, juntou-se aos seus e instalaram-se no barracão.

Albertini já tinha visto negros de olhos verdes, todavia nunca como aqueles: tão vivos, tão puros, tão juvenis! As palavras de Monsenhor Santini ecoaram em sua mente a noite toda “… são os piores … são os piores”.

Ao amanhecer, deu instruções para que o Vicente ficasse com os piores lugares para a panha, os morros mais inclinados, onde o sol batesse mais inclemente e onde, habitualmente, proliferavam as cobras.

Ao final do dia, o jovem estava sempre feliz, cantando, jogando capoeira com os companheiros de trabalho. Cantava, tocava violão, imitava passarinhos: parecia mais feliz à medida que suas condições de trabalho pioravam.

Certo dia, era sexta-feira, Vicente foi pedir a Albertini a permissão para melhorar uma velha habitação, que ficava um pouco mais afastada do galpão. Se possível, gostaria de ficar sozinho, pois …

– Faça como quiser!

Apressado, pois estava de saída para Vitória, subiu no jipe sem deixar o apanhador de café terminar de se explicar. Tinha consulta com afamado médico que tratava a doença da urina doce.

No retorno da capital, na segunda-feira, estranhou certa habitação em seu próprio sítio. Foi ver de perto. O casebre estava transformado: o telhado de tabuinhas estava perfeitamente realinhado, as paredes estavam caiadas, as portas e janelas, pintadas de cores vibrantes. Em volta, um jardim recém-plantado prometia embelezar o exterior e, no interior da casa, de paredes limpas e caiadas de branco, arranjos de flores foram pintados. Que gênio fizera aquilo? 

-Vicente! Respondeu o encarregado dos trabalhadores.

– Se os de olhos verdes são os piores, por que este fez isso? Pensou, confuso.

Na tarde seguinte, um veterinário foi chamado para realizar o parto de uma vaca que morria, mas não paria. Os apanhadores voltavam da lida. Um deles, vendo o sofrimento do animal, adiantou-se, lavou as mãos bem lavadas, pediu licença ao veterinário já exausto. Era Vicente. Ele enfiou as mãos no ventre do animal, delicadamente, fez movimentos precisos, metódicos, até que o bezerrinho veio à luz. Todos ficaram boquiabertos com a habilidade do jovem, que retirou-se, ensanguentado, para lavar-se no riacho.

Genaro, que tudo assistira de perto, ficou com o coração repleto de gratidão e alegria! Ia agradecer, mas a voz de Monsenhor Santini veio de longe no tempo e calou o seu broto de amizade.” … são os piores … são os piores”.

Contudo, na semana seguinte, os baianos voltariam para Itabela. Aquele, porém, ele queria que ficasse. Mesmo que tivesse olhos verdes, queria que ficasse. Fez o convite. O encarregado das turmas estava de mudança para Colatina. O rapaz aceitou a proposta. Enquanto os demais voltaram para a Bahia, Vicente ficou e assumiu o posto. 

Até a colheita vindoura, caberia a Vicente os cuidados gerais com o sítio. Os meeiros tinham ido embora, de vez em quando era necessário contratar trabalhadores avulsos para certos serviços mais dispendiosos. O resto, ficou por conta dele. Na época da panha, ele é que ensinava e supervisionava os trabalhos.

Genaro passou admirar o jovem, mas – ao mesmo tempo – a invejar a sua juventude robusta, musculosa e viril, enquanto ele mesmo envelhecia ressequido e encurvado. Invejava o bom humor do empregado, sua boa disposição e, sobretudo, porque não conseguia encontrar nele o abismo de defeitos e torpezas das quais falava Monsenhor Santini, seu professor mais ilustre no seminário. Isso era o pior! Não encontrar nele mazelas para atacar, para o ferir com uma repreensão…

Passados três anos, certo dia, Vicente procurou o patrão. Tão raras vezes ele fazia isso, que Santini estranhou. Já era noite, na manhã seguinte pegaria o jeep e rumaria para Vitória, enfrentando as estradas lamacentas, para consultar-se com o médico especialista na doença da urina doce. Estava com sono. O que o outro queria com ele numa hora daquelas?

À luz do lampião, recebeu o rapaz em seu alpendre. 

Cheio de confiança, Vicente fez-lhe o pedido: permissão para pegar um cavalo emprestado para ir à escola noturna, a fim de aprender a ler e escrever.

– Você é analfabeto??? 

– Sei ler e escrever muito pouco. Sou bom de contas, como o senhor bem sabe, mas as letras me fogem. Escrever é muito dificultoso para mim…

O coração, enfim, sentiu-se solidário ao rapaz. Entretanto, veio à tona as leituras de Renato Kehl,  Belisário Penna,  Octávio Domingues e Edgard Roquette-Pinto.  A flor da empatia foi esmagada, momentaneamente, pelo espinheiro de teorias eugenistas. Ele titubeou. O coração disse “sim”, mas a boca disse “Não. Há muito serviço! O estudo vai atrapalhar a panha do café!” 

Pela primeira vez, ele viu lágrimas naqueles olhos verdes. E corpo robusto encurvou. E a alegria se esvaiu por completo. Enquanto o jovem se afastava desiludido. Ele saboreou:

– É um iletrado! Ao menos nisso eu, de mim mesmo, sou melhor que ele!Pensou com torpeza.

Seu orgulho misturou-se ao remorso e não o deixou dormir. Passou a noite intentando ir à modesta casa do funcionário e dizer-lhe que não só lhe emprestaria o cavalo, mas também o jeep. Que, se possível, o traria para morar na casa principal, como um filho de sua velhice. E já que não tinha sobrinhos nem parentes próximos, deixaria – de papel passado – as terras para o rapaz! Quando amanhecesse, faria isso. Monsenhor Santini e os teóricos eugenistas eram umas bestas! 

No entanto, aos primeiros raios do alvorecer, Vicente partiu em meio à neblina. Pegou sua mala, subiu a estrada íngreme e pôs-se a caminhar. Um caminhoneiro o levou para as terras quentes além do Rio Doce, onde estudou e tornou-se técnico agrícola concursado em cargo público.

Para Albertini, a luz do dia não amanheceu. A doença da urina doce, que o médico de Vitória tanto avisara, fizera o seu trabalho. Abriu os olhos para a escuridão. Chamou por Vicente, mas ninguém atendeu. Gritou, cambaleou, caiu diversas vezes. Um vizinho ouviu os gritos e o socorreu. Levado ao hospital, foi confirmado: a diabetes roubara-lhe a luz dos olhos.

Sem parentes, sem herdeiros, sem ninguém de confiança, o sítio foi vendido por ninharia e ele, abrigado em um asilo, em Vitória, sentiu a desilusão das teorias falidas. Por anos, amaldiçoou Monsenhor Santini e suas ideias! E fechou os olhos, definitivamente, chamando por Vicente.

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