Boloterapia

Publicado em 13/08/2018 às 17:49

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Tudo começou com uma batedeira, herdada de um amigo francês. À primeira vista, o bonito aparelho doméstico, de uma marca semiprofissional, parecia algo do outro mundo para um sujeito que vivera a vida toda sem nem saber quebrar um ovo. Aceitei o desafio, fazendo, até, um vídeo ao vivo em uma rede social. E não é que essas mãos, acostumadas a espancar teclados, conseguiram fazer um (“complexo”) bolo de caixinha ver a luz? Nascia, naquele momento, um confeiteiro wannabe e eu entrava, ainda que pela porta dos fundos, para o maravilhoso mundo da confeitaria.

Digo assim porque, nem de longe, posso me considerar um pâtissier. Digo que prefiro brincar de boloterapia. Coleciono a marca de dezenas de bolos sem, até o presente momento, haver solado nenhum. Mas não sei fazer nada complexo. Leio receita. É isso. E, atualmente, prefiro bater tudo “no muque”, mesmo. É, de fato, uma terapia. Você revolve a massa e se esquece do mundo à volta. E das misérias que vêm a reboque. E o melhor: ainda pode comer, quando ficar pronto. Nem que seja com os olhos. De uns tempos para cá, andei retirando minhas doces criações das minhas redes sociais. Elas têm feito mais sucesso que os meus poemas.

Em um mundo tomado por programas de culinária, fazer bolo, ao que parece, virou sinônimo de sucesso, ainda que efêmero, como, aliás, costuma ser tudo, nos dias de hoje. Não gosto desse tipo de atração. Detesto fazer as coisas sob pressão e, sinceramente, tenho saudade da época em que programas de culinária eram comandados por simpáticas vovós, que abusavam de receitinhas simples e rápidas. Hoje, ao que parece, tudo tem que ser feito com pressa e sofisticação, como se um delicioso e prosaico bolo de fubá, acompanhado de uma manteiga e um café, junto de um dedo de prosa, em uma tarde, na varanda de casa, não fosse mais gostoso.

O festejado professor Mário Sérgio Cortella, aliás, fala disso: “pamonhização” do mundo. Ele conta um exemplo de sua família, fazendo pamonha, todo mundo junto, conversando. Na minha, era bolo. Quentinho, saindo fumacinha, do jeito que eu gosto. Disputava com meu irmão quem lambia a colher de pau e corríamos para o forno, para ver o bolo subir, como um milagre feito de fermento e calor. Não havia obesidade, não havia culpa. Havia tempo. E a gente não se preocupava com quantidades de açúcar ou o que fosse. Havia lactose no leite. Cafeína no café. Fraternidade nas pessoas.

Eu me lembro do meu orgulho em contribuir com a primeira sobremesa da família. Choveu elogios. Depois, dos amigos. Mais tarde, convites até para abrir um canal de bolos. Recrudesci: para mim, é mais um prazer do que tudo. Fazer um bolo em um fim de semana, levá-lo para o almoço dominical. Foi Mia Couto quem disse que cozinhar é um ato de amor. Hoje, que sei fazer alguma coisinha, entendo. Pode ser de protesto, também: na época da Ditadura, a Revista Veja (e outros veículos de comunicação) publicavam receita de bolo no lugar das matérias censuradas. Em tempo: na língua portuguesa, quando a companhia não vem, a gente diz que levou o quê?

Longe de mim me tornar confeiteiro. Talvez, no máximo, um “escritor-boleiro”. E só. Prefiro continuar conhecido pelos meus textos, ainda que meus bolos me fizessem “ascender” mais rapidamente. A batedeira do meu amigo continua usada, ainda que eu possa bater minha massa à mão. Nela, despejo as gramas de intolerância, preconceito e violência que assolam o Brasil (e o mundo) neste começo de século. E, antes de parecer um idealista (ou um alienado), saiba que, ao fel destes tempos, prefiro uma vida mais feliz e, certamente, mais doce.

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