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A madrinha

Publicado em 05/07/2021 às 10:11

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Os batizados sempre foram eventos muito prestigiados em Santa Teresa, uma cidade predominantemente católica, embora a Igreja Luterana tenha seus templos na cidade, bem como as igrejas protestantes tradicionais e neopentecostais.

O batizado selava a amizade entre famílias, reforçava laços já existentes e, também, era um recurso utilizado por famílias pobres para assegurar alguma proteção para os seus filhos, em caso de doença, extrema penúria ou orfandade.

Antonella Veletri era uma das mais procuradas na cidade, por ser influente e ter trânsito livre entre as famílias mais afortunadas. Muitos foram os seus afilhados e afilhadas. O marido, Giácomo não gostava daqueles convites, nem sempre os recebia com satisfação. Se o pedido vinha de algum subalterno ou pessoa da ralé da cidade: meeiros, assalariados, pobres sitiantes; ele chamava o requerente de lado e explicava:

– Eu aceito batizar o seu filho, mas não quero que você me chame de compadre!

Antonella compartilhava da mesma visão do marido:

– Todos somos filhos de Deus, mas cada um tem o seu lugar no mundo! Dizia, ela.

Ela tinha um genro que era médico. Como tinha sido criado entre os colonos da cidade, todos o chamavam de Giggio. Quando estava por perto e via esses arroubos de intimidade do populacho para com o genro, avançava com o dedo em riste:

– Giggio não! Doutor Genaro!!

Assim Antonella e Giácomo foram construindo os muros invisíveis que separavam as famílias que venceram na vida das que foram abatidas. Todos vieram na mesma imigração, mas estavam separados no caminho da vida e assim deveriam permanecer. Era a vontade de Deus!

Quando Donatella e o marido pediram para que batizassem a filha, aceitaram. Batizaram Kiara. Embora morassem na vizinhança, eles nunca se lembraram de olhar a criança com outros olhos. Era só mais uma das muitas afilhadas. 

O tempo passou. Kiara cresceu sabendo que aquela bela mulher, elegante e influente, era sua madrinha. Ao passar por ela, pronunciava um tímido:

– A bênção, madrinha!

Antonella acenava com a cabeça, secamente.

O tempo passa lentamente em Santa Teresa. Vai descascando devagarinho a pintura das casas, a ferrugem vai trabalhando lenta e persistentemente em grades e portões. Muros altos e imponentes vão sucumbindo à ação dos elementos. Os cupins vão fazendo o seu trabalho oculto, debilitando imensas peças de madeira.

Kiara nasceu doentinha e doente cresceu. Doença nervosa. Não havia médicos para doenças nervosas em Santa Teresa. Muitas foram as suas desventuras, porque o povo teresense não compreendia que a mente também adoece, não é só o corpo. 

Antonella acompanhou, por décadas, a via crucis de Kiara. Mas não podia se envolver. Cada um com os seus problemas, cada um com a sua cruz. Sabia dos problemas financeiros da família de Donatella, mas ficava insensível a essas penúrias, porque não eram os únicos na Terra a passarem por dificuldades. Quando a afilhada, na adolescência, demonstrava os primeiros distúrbios mentais, permaneceu impassível, pois há muitos loucos no mundo e para eles foram feitos os hospícios. Kiara casou-se, teve filhos e sempre às voltas com psiquiatras, e a madrinha via aquilo com indiferença, porque tanto sofrimento lhe enfadava.

O tempo é um paciente pintor. Pintou de branco a vasta cabeleira de Antonella, desenhou-lhe rugas profundas no rosto e em todo o corpo. O tempo também é enxadrista. Move peças. Retirou Giácomo do jogo da vida. Depois, removeu o genro. A filha e o netos foram movidos para mais longe, atendendo a necessidades de estudo e trabalho. De repente, viu-se muito sozinha no tabuleiro da vida. O casarão, enorme, virou um labirinto no qual ela andava, andava e não se encontrava. As funcionárias faziam o serviço da casa, mas não lhe ofereciam calor familiar. De repente, sentiu necessidade do calor humano. Mas se nenhum familiar estava disponível, quem poderia aquecer a sua vida octogenária?

Os afilhados!! Sim! Tinha tantos! Foi atrás deles! Muitos eram empresários bem-sucedidos na cidade, mas não tinham tempo para dispensar à velha senhora. As afilhadas, que agora trafegavam nos espaços sociais nos quais ela tinha sido rainha, não queriam dar os braços a uma idosa que usava bengala, óculos de fundos grossos e aparelho auditivo. Viu-se enjeitada, pela primeira vez na vida.

Um táxi a levou à periferia, percorreu Vila Nova, Alvorada, São Lourenço, e nada. Rumou para a zona rural: Valsugana, Caravaggio, São Dalmácio e cafundós do Judas, nada! Não se lembrava do nome dos afilhados e afilhadas, não sabia onde moravam. Já eram tantas décadas de ausência e descaso. Como nunca permitiu que aquelas pessoas a chamassem de “comadre”, ficou impossível reatar antigos laços de amizade. Voltou para casa. Revirou gavetas, procurou velhos álbuns de fotografia. Nada. Não tinha fotos, nem registro, nem anotações desses afilhados que o tempo esmaeceu na memória.

Quedou-se triste. Como as ocupações da filha e dos netos só aumentavam, enquanto ela se curvava mais às exigências do Tempo, foi internada em um asilo. Ali, lúcida, sopesa orgulho, vaidade e conveniências mundanas; percebeu que de nada valiam agora. Semanas, meses e anos se passaram trazendo mais afastamento da família e solidão aos seus dias.

As funcionárias do asilo eram simpáticas, atenciosas, solícitas, mas eram pessoas vindas de fora, sequer sabiam quem ela tinha sido, qual era a sua história. Não havia laços naqueles contatos. 

Um dia, quando Antonella já não tinha forças para falar, andar ou movimentar os braços. Apareceu uma visita inesperada. Uma mulher se aproximou, passou a mão pelo rosto consumido, acariciou os fios de cabelo, beijou-lhe a mão encarquilhada.

– A bênção, madrinha!

Era Kiara. Estava recuperada e trabalhava ali próximo. Soube que a velha senhora estava depositada ali há alguns anos e veio visitá-la. Quis movimentar os braços, abraçar a afilhada! Quis levantar-se e levá-la para passear! Lembrou-se de toda a sua vida de sofrimentos, provações e privações, e lembrou-se que sempre ficou impassível e indiferente. Constatar isso fez com que lágrimas ácidas brotassem dos seus olhos.

– Não chore, madrinha! Vou passar aqui todos os dias para te visitar! Está bem, madrinha!?

Madrinha, madrinha, madrinha, madrinha, madrinha… Ficou ecoando em sua mente, enquanto o mundo perdia as suas cores e odores.


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