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Arrivederci, Zita!

Publicado em 25/06/2021 às 16:38

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Quando eu a conheci, ela já era idosa. Cabelos de neve, olhos azuis muito vivaces. Pequenina e já encurvada pelo peso das muitas décadas, a Zita foi uma semente que ficou perdida entre os descendentes da imigração italiana. Casou-se, mas não teve filhos. Ficou viúva. Os seus familiares foram indo para o outro lado da vida um a um, até ficar só ela no mundo. Já idosa, contando somente com a aposentadoria, ela se viu em companhia apenas da solidão.

Por motivos que só ela poderia explicar, já em idade bem avançada, a Zita deixou a Igreja Católica e filiou-se a uma igreja protestante. Como ela não tinha ninguém para dar satisfação, tomou todas as decisões que quis e viveu de acordo com as suas convicções.

O tempo foi passando, foi metamorfoseando a Zita. Ela foi ficando diáfana, tremeluzente. A gente olhava e não sabia se era gente ou se era uma aquarela. Algumas crianças interpretavam que era uma fada, outras interpretavam que era um anjo. Mas a vida estava difícil para ela. De repente, até uma colher foi ficando pesada demais.

A Zita era calma, contemplativa. Ela já havia enfrentado muitas batalhas e olhava a vida como quem já perdeu o medo e a pressa. Contudo, não dava mais para morar sozinha. Então, certo dia, um casal da igreja que a Zita frequentava foi visitá-la. Era um casal de negros, já maduros, cujos filhos já estavam criados e emancipados. A empatia entre eles e a anciã era intensa. Logo a situação foi decidida:  ela iria morar com o casal.

Nova família se formou: um homem e uma mulher negros conduzindo uma velhinha de origem italiana nos últimos passos da vida. O tempo foi escoando. E a Zita foi apurando a habilidade de ficar diáfana. Durante alguns meses, viveu solidariamente com aquela família tão diferente – fenotipicamente – daquela que a trouxe ao mundo. Às vezes, eu olhava para ela e não sabia se era uma criança, uma jovem mulher ou uma anciã. A cada movimento, ela assumia uma aparência: deitada em sua cama, era uma criancinha loira; quando estava na janela, olhando o movimento da rua, era uma bela mulher italiana no esplendor da juventude. Já quando colocava o véu para orar, assumia a aparência do momento: uma anciã em idade avançadíssima.

O vento ia soprando entre as matas, levando folhas já sem serventia, depurando a atmosfera de Santa Teresa. A Zita lembrava bem uma folha que ia sendo levada. E, assim, certo dia, foi inevitável: ela teve de ficar internada. A negra senhora protestante, que tinha assumido a responsabilidade sobre ela, ficou sendo a sua companhia diuturnamente; já que não havia parentes ou outras pessoas disponíveis para o revezamento.

Ah! Como a vida é boa! Além de estar internada em um hospital filantrópico, ao quarto da Zita foi levada uma outra senhora. Não uma senhora qualquer, mas a mãe de uma médica! E foi um júbilo: não parava de chegar médicos e enfermeiros para visitar a nova paciente. A todo momento, alguém passando para ver como a mãe da médica estava, se queria alguma coisa, se iria querer alguma coisa ou por que não queria alguma coisa. Aquelas visitas, aqueles cuidados super-redobrados não eram para a Zita, mas alguma migalha poderia cair para ela, não é?

Ninguém é de ferro. A negra senhora protestante, que era o anjo da guarda da Zita, adoeceu. Foi acometida por uma infecção na garganta. Não poderia ir fazer companhia à velha amiga naquelas condições. Não me perguntem por que outra pessoa não foi substituí-la ou por que não se contratou uma cuidadora. Eu não sei o porquê. Há coisas que queremos fazer, mas não conseguimos.  Porém, não havia com o que se preocupar: a Zita estava no “quarto da mãe da médica”. É, o quarto era assim conhecido: “o quarto da mãe da médica”. Estando lá, a Zita seria, certamente, bem cuidada, zelada, vigiada e, quem sabe, estimada como a mãe da médica. 

Três dias se passaram. Depois de três dias, a infecção na garganta da negra senhora protestante foi arrefecendo. Três dias Jesus ficou no Mundo dos Mortos, três cruzes estavam no monte Calvário, três são as pessoas da Santíssima Trindade e três dias a Zita ficou sem companhia, nos quais não tomou banho, ficou num semiabandono, com forte dor no peito. Sem que alguém prestasse atenção na sua situação de sofrimento e solidão. Pouco adiantou a indignação da negra senhora protestante, ao retornar ao hospital, afinal a Zita não era da mesma estirpe da mãe da médica… Estava querendo o quê? Idosos têm que ficar com acompanhante! Pouca importa se o idoso não tem ninguém mais no mundo: se é idoso, tem que ficar com acompanhante!!

Dio mio!! Onde estava agora a mãe da médica? Cadê todas aquelas médicas e médicos de alvas peles e jalecos branquíssimos? E a equipe de enfermagem toda sorriso, cuidados e solicitude? Cadê? Onde? Por quê? E aquela dor lancinante que a Zita sentia, o que era? Alguém, ajuda! Pelo amor de Deus! Façam alguma coisa, ela também é filha de Deus!

Perante o clamor estrondoso e o vigor moral da negra senhora protestante, uma fria estátua de mármore, vestindo um jaleco branco, foi examinar a Zita. Depois de feitos os exames necessários, constatou-se: aquela faca afiada que estava perfurando o tórax da Zita, de dentro para fora, era um tumor. Era por isso que ela tinha tanta dificuldade de respirar, por isso aquela agonia. Ao menos descobriu-se o que era e ao menos ela recebeu a medicação necessária para aliviar a dor, porque a situação física e a idade não permitiam uma cirurgia. Ao menos, depois de três dias, a Zita tomou um banho e se deitou sobre lençóis limpos. Ao menos a cidadania e a humanidade dela, mesmo que devido a brado forte, foram restituídas e respeitadas.

Em alguns dias, o céu de Santa Teresa estaria diferente. A Zita fechou os olhos infinitamente azuis. Ela estava calma. Não tinha medo de nada, pressa de nada… Nada deixou: nem casa, nem filhos, nem parentes. Aliás, deixou saudade.

Arrivederci, Zita!


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